Apesar de ser uma pessoa com hábitos de escrita, afeita a diários e depois, “cadernos de bordo” da jornada, há bastante tempo tinha colocado em suspenso essa prática. Ademais, como encontrar inspiração para me expressar sobre o envelhecer, na sociedade das aparências, onde é quase uma maldição, um infortúnio, colecionar anos?
Sendo fruto de famílias longevas, com alimentação mediterrânea e hábitos saudáveis, bem como valorizadores do trabalho e da ação, norteados pela ética, alegria, solidariedade e responsabilidade, creio que não tenho muita escolha senão lidar bem com os anos somados... Quando adolescente, ajudei minha mãe a cuidar de meus avós e agora cuido dela e de meu tio, com 84 e 96 anos respectivamente, o que é um privilégio. Não é fácil ver nossos heróis perdendo a majestade e lidar com seu crepúsculo é muito difícil, porém também fortalece. A maioria de meus amigos não têm os dois pais vivos como eu. Ao lidar com aqueles seres que ampararam e protegeram, necessitando agora de cuidado e orientação, numa inversão da ordem lógica da vida, percebo surgirem sentimentos completamente impensados até então... A idade traz passos mais lentos, menos flexibilidade e agilidade, dificuldades de organização do tempo, falhas de memória, uma incapacidade crescente em muitos aspectos e isso põe em xeque um modelo internamente criado de relação. Vou dar um exemplo prático: é comum pessoas mais velhas derrubarem comida fora do prato, coisa que até tolerávamos nos nossos filhos; mas é muito difícil de aceitar quando acontece com os que nos precederam. O primeiro impulso é corrigir, limpar, até repreender. Então acende dentro do coração uma luz pedindo paciência e compreensão, acolhimento. Sim, porque o que menos eles têm em seus “déficits” é acolhimento, como se fosse um crime deixar de ser completamente eficiente... E na medida em que consegui encontrar dentro de mim tolerância para esses “pequenos deslizes”, observei que estava me tornando uma pessoa também mais complacente e amorosa comigo mesma.
Enquanto psicóloga, leio muitos artigos sobre os fenômenos humanos, e me chama a atenção uma grande quantidade de publicações sobre os idosos órfãos de filhos vivos. Terceirizar o cuidado com nossos velhos é quase uma regra. Sim, é muito trabalhoso e custoso, mas talvez o estímulo para esse abandono, seja o fracasso do homem moderno em lidar com o seu próprio declínio e finitude. Desde que começamos a nos impor sobre a Natureza, fomos desenvolvendo também uma arrogância, ou “Hybris”, como chamavam os gregos, além da ilusão de que podemos praticamente tudo. Com a Era Digital então, conseguimos criar todo tipo de subterfúgio para minimizar e afastar o envelhecimento. Assim, fomos nos distanciando também de nossa humanidade. E quando desprezamos então nossas raízes, o resultado é a explosão de todo tipo de desequilíbrio, afinal sem bases nada se sustenta.
Nas sociedades orientais e ameríndias, o idoso tem um papel de destaque, justamente pelo seu acúmulo de conhecimento e vivências, gerando sua sabedoria ímpar, onde ponderação, sensatez, cautela e profundidade, são características valorizadas. Eles são a Voz capaz de contar a saga da comunidade, mantendo vivas as tradições e ensinando sobre os valores desenvolvidos, desvendando os laços da teia que sustenta o Bem comum. No entanto, os consultórios estão lotados de pessoas buscando se encontrar e compreender, sendo que mal conhecem suas histórias pessoais, e pouca intimidade têm com seus ascendentes e pares. Praticantes de frenéticas comparações com a explosão de perfis fakes nas redes, onde só existe o lado iluminado e feliz, onde todo mundo é top, “família de margarina”, como poderão encontrar o bem estar, se a busca é sempre para fora de si? Autômatos, para suportar o viver se dopam com todo tipo de droga, dependendo do momento. Ora estimulantes, ora calmantes, sempre para longe da insuportável humanidade que lembra a maldita finitude. Não é à toa que a morte continua sendo um tabu, e os velhos, a mais concreta lembrança de que todos nós, se quisermos estar por aqui, também chegaremos lá.
Mas nem tudo está perdido... Vejo também brotarem antes timidamente e agora mais intensamente, iniciativas de resgate de tudo o que é ancestral: encontros para bordados, contação de histórias, retomada de receitas de remédios caseiros, banhos de ervas, benzimentos... Há também um movimento global de revigoramento dos brinquedos tradicionais, pois as crianças obrigadas a lidar só com botões e objetos que fazem tudo, estavam adoecendo... Quem nunca se encantou com cantigas de roda, se desenvolveu com parlendas, se divertiu com as brincadeiras inventadas? Precisamos observar onde e como tudo isso acabou e urgentemente mudar a direção. Com certeza, o universo da ancestralidade nos servirá de guia e farol!