O menino e o tempo
Antônio Gastão – Petrópolis
Alguns meninos nunca envelhecem. Mario Quintana fala da vida como a “estranha Nau que não demanda os portos... toda apinhada de meninos mortos”, mas o Mario menino, ele mesmo, nunca morreu. Ao menos, não morreu definitivamente. Morreu e renasceu em vida, infinitamente menino: “da primeira vez em que me assassinaram, perdi um jeito de sorrir que eu tinha; depois, a cada vez que me mataram, foram levando qualquer coisa minha”, mas “não haverão de arrancar a luz sagrada... a luz de um morto não se apaga nunca”. Dele, com certeza, não arrancaram a luz sagrada dos sonhos da infância, a luz sagrada do espanto de menino diante do mundo.
Sim, eu sei que comecei esse texto falando do Quintana, mas o menino tem vida própria e arrasta o velho pelos caminhos que quer. Comecei falando do Quintana, e pretendia falar da tristeza de reconhecer que, sim, infelizmente a maioria dos meninos envelhece, enrijece e morre, mesmo quando a aparência permanece jovem. Mas bastou escrever o primeiro parágrafo para a cabeça começar a lembrar de diversos artistas admiráveis que possuem o traço comum do desejo de não deixar o seu menino se apagar.
Falo, então, daqueles músicos que ganharam o apelido coletivo de “Clube da Esquina”, a turma dos mineiros: Milton Nascimento, Fernando Brant, Lô Borges, Beto Guedes, Flávio Venturini, aquela turma que cantava que “há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração”, que expunha os amigos adultos que carregavam o segredo de ter medo de ser “tudo que você podia ser” mas que, ainda assim, dançariam com você “se você deixar o coração bater sem medo”. Um dos meus sonhos é fazer um concerto só com essas músicas que falam de amizade e sonhos de infância, essa playlist de canções que enchem meus olhos de lágrimas a cada vez que as escuto. Sei que não estou sozinho e que muitos amigos estarão ao meu lado se emocionando profundamente com a lembrança dessas canções.
E é impossível falar dos meninos “imorríveis” sem falar do escritor/jornalista/poeta Gilbert Keith Chesterton, meu santo de devoção, à espera da canonização. Chesterton é daqueles que, como Quintana, jamais deixou morrer a criança que foi. Ele jamais deixou de se maravilhar com as pequenas coisas, com as coisas comuns carregadas de qualidades incomuns, encantando-se com o verde da grama e surpreendendo-se com nossa incapacidade de ver o fantástico que se descortina debaixo de nossos olhos. Talvez por isso fosse encantado com os contos de fadas, que ele via como a verdadeira educação para a vida. Os contos de fadas mexem com elementos que já estão no imaginário infantil (os reis, os príncipes e princesas belos e corajosos, as bruxas os monstros...) e dão sentido a esses elementos. Dão sentido a conceitos hoje meio abandonados, como honra, dever, coragem, abnegação... E mostram que, mesmo nas piores situações, é possível vencer. Como ele mesmo disse: “Contos de fada não dizem às crianças que dragões existem. Crianças já sabem que dragões existem. Contos de fada dizem às crianças que dragões podem ser mortos”. Era tão apaixonado por esse espírito infantil que chegava a atribuí-lo ao próprio Deus, possuidor da vitalidade abundante das crianças que as leva a querer repetir incansavelmente as atividades que apreciam. Esse seria o espírito que anima o Sol a se levantar todas as manhãs: “vamos de novo”, como pede uma criança. “Talvez não seja uma necessidade automática que torna todas as margaridas iguais; pode ser que Deus crie todas as margaridas separadamente, mas nunca se canse de criá-las. Pode ser que ele tenha um eterno apetite de criança; pois nós pecamos e ficamos velhos, e nosso Pai é mais jovem do que nós.”
Tristes de nós que nos cansamos e ver a repetição das belezas e não vemos com surpresa as maravilhas escancaradas nas coisas cotidianas. Tristes de nós que cansamos de repetir as coisas boas como um pão, um despertar ou tocar um instrumento. Envelhecer não precisa ser assim. Pode ser como Bach, cego e acamado, escrevendo a última Fuga, ou como Tolstói, fugindo de casa aos oitenta e dois anos de idade, como nos lembra, aliás o próprio Quintana no seu “Poema da gare de Astapovo”:
O velho Leon Tolstói fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua…
Sentou-se… e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo tão sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu…
Ele fugiu de casa…
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!
Sim,
Porque se chamavam homens
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
E chega. Para que escrever crônicas se os poetas já falaram melhor?
P.S.: A playlist CANÇÕES DE AMIZADE E SONHOS DE INFÂNCIA (sim, ela não é só força de expressão):
https://open.spotify.com/playlist/1rBkMjVyrenZlAewVJCr8T?si=16X_I8lRQEKVVsUOzys6ng