Morrer na velhice: medo, dor, alívio, e realização
Rose Junqueira
Lá em casa desde pequenos participávamos dos funerais, convivíamos com a morte, a dor das famílias e também com o temor pelos fantasmas ou espíritos. Minha mãe nos levava aos velórios, cemitérios e ela ainda era chamada para arrumar os defuntos. O que fazia com que eu não comesse a comida que ela fazia por alguns dias. Para uma criança a morte parece coisa distante, na adolescência e juventude parecia estar totalmente remota e não se pensava nela.
Tive uma experiência com a morte na adolescência, o que ainda me faz perder a respiração, como agora, que estou buscando essas lembranças. Aos domingos, como opção de lazer, algumas famílias levavam seus filhos para nadar em algum rio próximo a cidade. E assim em um domingo no verão, depois de insistir muito para minha mãe me deixar ir com uma família amiga para passar o dia em um rio onde havia ruínas de uma antiga usina hidrelétrica. Lindo o lugar, formava uma cachoeira em que se podia ficar atrás dela nas pedras e sentir os respingos de água no corpo. Uma grande árvore na parte mais rasa do rio, onde ficamos fazendo piquenique e também onde entravamos na água, lugar mais seguro.
E foi nesse lugar que eu, minha amiga e sua irmã demos as mãos formando um círculo e mergulhamos. De repente estávamos em um redemoinho, fomos arrastadas para a cachoeira pela correnteza e eu fiquei presa no redemoinho. Tudo foi rápido, não sabia, nem pensava nas outras duas. Tentava insanamente, desesperadamente sair, mas sempre era puxada para baixo. As pessoas me olhavam, mas não tinham a coragem de se arriscarem naquela turbulência de água. Eu já cansada de lutar, parei, me entreguei. Foi uma sensação de alívio, desapego, descanso, me lembro de soltar o corpo em uma eterna leveza, uma sensação gostosa por estar solta, com um corpo inerte sendo movido, domado e entorpecido pela própria água.
Foi quando pensei que não poderia me deixar levar, isso pelo sofrimento que causaria na minha mãe, um sentimento amedrontador. Comecei a lutar desesperadamente, batia braços e pernas sem medir o esforço, sabia que não poderia morrer, não por mim, mas pela minha mãe. Consegui chegar no raso e as pessoas me pegaram e me tiraram do rio, estava atordoada, mas viva.
E o desespero veio quando uma cena horrível acontecia, a mãe da minha amiga tentando entrar no rio apavora, descontrolada, envolvida em sentimento de dor e pavor, que mesmo sem saber nadar tentava se lançar na água. O pai disse a ela: “querida ainda temos outros quatro filhos para criar”. Terrível, foi aí que percebi que minha amiga tinha morrido, ela não emergiu, desespero em todos que ali estavam. Estávamos com 14 anos, aquela fase em que as meninas começam a desabrochar, sonhar e se tomar por uma beleza meiga, sedutora e ingênua.
Alguém me levou para casa, e o encontro com minha mãe foi um misto de alívio por eu estar viva e pavor por saber que minha amiga estava morta, nos abraçamos, choramos e tentaram me acalmar. Muitas pessoas estavam na frente de minha casa e a mamãe sentada na calçada chorando, pois a notícia que chegou era que as três estavam mortas. O corpo só foi encontrado no outro dia, uma noite de angústia, como também a sequência dos muitos dias, meses, anos que vieram. E com tudo isso tive precocemente um enfrentamento diferente com a morte. Ela em si, não me causou transtorno algum, são minutos e segundos de muita paz e liberdade, a gente flutua sentindo o corpo bailar. Acho que vivemos para quem vale a pena.
Isso me fez gostar ainda mais da vida e me ensinou buscar essas mesmas sensações continuamente. Sou responsável com ela, mas também exigente, viver é uma escolha que te leva ao envelhecer. Ficar velho é ficar cada dia mais perto da morte, em uma contagem regressiva, e também ficar pertinho dela com aqueles que você se agarrou a vida inteira. Esse rompimento talvez possa ser enfrentado em uma comparação com o corte do cordão umbilical, nasce uma vida e no final se interrompe uma vida. Natural, sem medo, sem constrangimento, principalmente se você a encara com sabedoria e realização por uma vida vivida. Morrer velha é uma dádiva, só gostaria que ela viesse com muita dignidade e que eu tivesse aquela mesma sensação dos 14 anos. Acho que quando ela chegar, poderá ser ainda melhor pelo tanto de sua seiva que aproveitei em todos os meus dias vividos.
Quando li um artigo da Eliane Brum em 2012 sobre o envelhecer, percebi que não poderia encontrar outras palavras para falar sobre o que gostaria da morte. Nesse trecho ela fala como ela gostaria que acontecesse com ela: ...“Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena. A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para que a minha não seja apartada de mim. A vida é incontrolável e posso morrer de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa cama e, nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize a minha dor. Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é apenas o meu querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja melhor que a dos outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor e sem tubos, porque o morrer será minha última experiência vivida. Acharia frustrante perder esse derradeiro conhecimento sobre a existência humana. Minha última chance de ser curiosa.”